Cada dia que passava, eu ficava mais atarefada. Depois de por um cachorro de relâmpago para fazer o trabalho sujo para mim, recebi inúmeras missões semelhantes; achei que estava na hora de mudar. E essa foi uma das raras vezes que me obriguei a mostrar a cara para sociedade em plena luz do dia. Perto das quatro, sai em direção ao centro. Na rua, crianças brincando, cachorros passeando, gatos fuçando latas de lixo nos becos. As pessoas seguravam os braços de seus filhos quando me avistavam, tentando protege-los de mim por um motivo que nem Jashin sabe. Dou de ombros quando percebo. São tão membro daqui quanto eles, tenho o dever de dar a minha não vida pela segurança deles, e é com repúdio que me agradecem. Não é bem do meu feitio dar importância aos mortais, mas algo realmente estava me incomodando. Tentei deixar aquilo de lado por enquanto. Olhando o céu claro, percebia tufos brancos distribuídos aleatoriamente, tomando diferentes formas conforme eram empurradas pelas correntes de ar quente.
Um solavanco me jogou ao chão e saquei minha foice imediatamente, encostando a lâmina na garganta do indivíduo. Foi um gesto automático, percebi o quão tensa eu estava quando vi o reflexo dos castanhos intensos e o semblante agressivo refletido na face escarlate da arma.
— E-ei, calma, garota. — Um rapaz qualquer usando uniforme de chunnin estava pálido e com os olhos arregalados.
Como de costume, eu não disse nada. Apenas levantei, ignorando a mão estendida dele. Fingi não ter acontecido nada e passei por ele como se não estivesse ali. O garoto ficou estupefato, observando eu me afastar. Poderia jurar que vi um monte de interrogações rodopiando na cabeça dele.
Após alguns minutos de caminhada e negação total da existência humana, finalmente cheguei ao meu destino. Já nem havia mais notado quaisquer almas que estivesse por perto, guardas, moradores e etc. Aquele ponto da cidade era bastante movimentado. Ergui a cabeça, colocando a mão na testa para aparar a luz do sol. O prédio era bem alto. Uma arquitetura moderna e conservadora ao mesmo tempo, com o símbolo Ho em vermelho enorme bem no centro. Passei pela porta principal, seguindo para as escadas. No andar de cima, haviam quadros de figuras importantes da vila e um espelho. Observei por um instante meu reflexo. O cabelo estava novamente cheio de fios soltos que teimavam em ficar fora do lugar, dando aspecto bagunçado. Minha blusa sem mangas e gola alta estava impecavelmente branca. Uma vez ouvi que gostava dessa cor para anunciar quando eu terminava de trucidar algum inocente. Essa gente inventa cada coisa... dei uma olhada em mim mesma e encarei meus olhos. Estavam escuros hoje, apesar do ambiente estar razoavelmente iluminado, orbes negras jaziam por trás de minha franja desarrumada. Pareciam sem fundo, coberto por uma sombra que nem sempre estava alí.
— Posso ajudar? — Uma voz exageradamente melódica surgiu atrás de mim.
Era uma moça que trabalhava no prédio, sempre era simpática demais comigo não sei porquê. Eu nem me lembro o nome dela, só sabia pela voz e pelo cheiro doce que exalava.
— Vim ver o Hokage. — Respondi.— Já sei onde fica a sala. — Me adiantei, assim não ia ter que dar brecha para conversa fiada.
Me retirei em seguida e ela ainda chamou.
— Você é a moça Yuzu, não é? O Hokage já está esperando! —
Já de costas, olhei discretamente por cima do ombro apenas para ela saber que eu ouvi e não precisar mais falar. Alguns andares acima, cheguei ao corredor da sala do Hokage. Era amplo, paredes vermelhas, três janelas grandes com vista para os fundos de Konoha, vasos com plantas adornavam a extensão. Porém para minha insatisfação, parecia um formigueiro, gente entrando e saindo, esgueirando-se ao passar por mim, para não ser pego sem querer pelas minhas lâminas. Caso contrário, eu não precisaria sair para procurar oferenda. Uma pena eu ter que honrar minha palavra. Ceifar vidas que não merecem pisar nessa terra. Jashin nunca reclamou das almas sujas que mandei para ele e continuará assim até que diga o contrário ou alguém me der motivo o suficiente.
Fui até o escritório e bati com o nó dos dedos três vezes e aguardei uma resposta.